sexta-feira, 25 de maio de 2012

ESPINHO


“… um espinho, um enviado de Satanás para me atormentar…”
2 aos Coríntios 12:7

cravado um espinho me foi
na língua uma ponta cuja ponta
é o veneno por dentro do paladar
o hálito do anjo da negritude
uma textura acre
que reúne contra mim
num só golpe todos os golpes
e açoites do mundo

cravado na língua e revolvido
na carne como o punhal
no ventre do inimigo
que só nessa hora
se aprende a conhecer
de tão perto que os olhos
de uns nos do outro se vêem

pensava que com língua
amortalhada seria impossível dizer
os poemas da minha vida
que são a incessante forma
de o coração dentro dos escombros
do peito saber ser generoso

mas subitamente
elevado à morada mais longínqua
do céu sem corpo talvez sem sonho
aprendi que nenhum espinho trava
a língua antes mais a adestra
na cadência da palavra proclamada
na disciplina da graça

Rui Miguel Duarte
25/05/12


sábado, 19 de maio de 2012

Carta Encontrada Numa Ânfora


Carta Encontrada Numa Ânfora
1187

Carta encontrada numa ânfora pelo arqueólogo inglês Christian Balden, no ano 1987, na cidade de São João de Acre (atual Acre, em Israel). É atribuída ao Capitão Gualdim Chalamera, supostamente o último soldado da Ordem Templária a cair quando do cerco dos maometanos de Saladino, que tomaram a cidade, em 1187.


Naquele dia quando
todas as mortes se abateram sobre mim,
mas desgraçadamente sobrevivi,
Você, cujo poder é a Aurora e é Tudo,
- porque me preservaste?

Aleximandro foi vencido por Satanaquia
e traiu a Ordem e a Ti, o Deus Vivo:
permitiu a entrada dos inimigos, e três
dos quatro círculos de defesa caíram

Grande EU SOU
ao se multiplicarem tanto as traições
foi destruído o meu amor
e eu já como que não posso combater
sim, fui adestrado nas masmorras do inferno
e por isso eu ainda resisto
e ofereço combate nas múltiplas frentes
onde me designaste lutar
mas estou sozinho
(e eles destruíram o meu amor)
as flechas findam em minha aljava
(já arranquei as flechas
dos cadáveres de meus companheiros).
Envie reforços, envie
alguém
não por mim, que estou morto,
mas para sustentar as cabeças-de-ponte
quando eu cair
pois Legião força todas as portas,
e a cidade é morta.

Sou um cão recrutado num estranho momento
onde faltaram os homens;
Tu o sabes, mas aqui o reafirmo:
a única honra de minha vida imunda
foi vestir esta cruz vermelha ao peito,
foi lutar ao lado e à favor
dos que Te amam.

Os que vão morrer te saúdam!
Eu te saúdo,
vencedor de César e vencedor da Morte
e na ressurreição, se os cães alcançarem-na,
saudar-te-ei com as minhas cicatrizes.

Verme e mendigo, bastardo e despatriado,
Morro como Soldado de Cristo.

Viva para sempre o nome e a glória
do Senhor dos Exércitos!
Para sempre o Teu Nome! Para sempre o Teu Nome!

 "Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome dai a glória".

Sammis Reachers

quinta-feira, 17 de maio de 2012

DÓI-ME JERUSALÉM








   



"Me duele España "

Miguel de Unamuno



Dói-me Jerusalém, os ossos

que não ficaram pedra sobre pedra

dói-me o muro

onde os rostos se descascam

das lágrimas, onde os lábios

segredam

as Lamentações trágicas da vida

doem-me

as alturas desmedidas do Sinai

o frio das pedras

onde antes um fogo se acendia

dói-me a sarça extinta

e doem-me os sete braços

do candelabro, levado para Roma

por um preço insuportável.


16/5/2012


© J.T.Parreira

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Irmão Argos


O Irmão Argos

Moramos próximo à praia onde,
sempre que faz-se possível, estamos.
Minha filha Lorelei então brinca
Com nosso cão Argos
- Rolam na areia e empurram-se e
Irmanam-se -
E isso é um espetáculo e descanso
Para meu estresse urbano-acinzentado.

Mas o verdadeiro fato singular
Dá-se apenas quando a segunda-feira
Como um aviso prévio e lembrança aziaga
Não me arrebanha de antemão com seu chamado
Urbano-acinzentado,
E tardamos na praia até o pôr do sol:

Argos desprende-se de nós,
Sua familiar despelada matilha
E sobe para uma alta duna
À oeste da praia, e fica de lá
Olhando para a barra, para o horizonte
Onde um amálgama antigo funde
O céu com o mar.

Ele não olha o pôr do sol como o resto da família,
Mas sempre em direção diversa.

São minutos silenciosos (Lorelei
É pequena e a duna é distante:
Não deixamo-la subir até lá).
Ele assenta-se solitário e observa e observa
Apenas, enquanto o sol a despencar
Doura a pele frágil do mar.

Entendo o cão, irmanamo-nos nisto:
Ele também aguarda um Retorno.
O retorno de Alguém que, ele parece intuir
Ao ver o declínio solar,
Um dia virá,
 Em lugar do sol.

Ele virá, irmão Argos.
Estejamos ataviados.

*Poema livremente inspirado pela leitura do belíssimo texto ‘Lampo, o cão que andava de trem’, de uma edição de 1981 da revista Seleções do Reader’s Digest.

**Veja como um poema pode ofertar diversas leituras: falo aqui claramente do retorno de Cristo; mas deliberadamente nomeei o cão como Argos, que é o nome do cão de Ulisses. Depois do herói homérico passar pelos dez anos de desventuras da Odisseia, e finalmente lograr retornar ao seu lar, onde a família o esperava, o seu cão Argos foi o único a reconhecer o viajante.

terça-feira, 15 de maio de 2012

EXORTAÇÃO

“Uma árvore tem sempre esperança”
Livro de Job 14:7


uma árvore tem sempre
esperança
semeada na raiz
enquanto os homens
deixam na terra, que lhes suportou
o peso, por tributo os ossos

só as árvores não morrem
mesmo que lhes separem
o tronco dos pés sempre darão
de si rebentos novos
pois persistentemente os seus olhos
fixam o seu amigo sol

tu homem em vez de rendido
ao rosto do pó
sê como as árvores
que se mantêm de pé,
em quem as aves do céu

também esperam

Rui Miguel Duarte
15/05/12

terça-feira, 8 de maio de 2012

LUZ DO MUNDO

“… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante”
Jorge de Sena

Uma pequena luz igual
a todas as outras
e desigual de todas as outras
uma pequena luz que incendeia
todos os sóis
uma luz que apenas brilha
tal a vida que é extraída da chama

que insiste em brilhar
sobre o sopro azedo
dos que a não percebem
porque se vestiram de negritude fosca
da indiferença do mundo
e não sabem que língua
fala a luz a luz
em todas as línguas clara
e brilhantemente vertida
eng kléng Liicht schéint
lux parua lucet
luz que se não extingue
que se não dobra ante qualquer
vento

em todo o mundo luz é 
o foco firme do mundo

7/05/12


Harmonia Interior






Aprendi a lidar com o tempo

a saber esperar

ainda que a espera seja longa


Aprendi a saborear a ausência

volátil

da essência interior


Aprendi a harmonia do relógio

a marcar silêncios.

Eduquei-me.



© Florbela Ribeiro

quinta-feira, 3 de maio de 2012

SOBRE A MURALHA


“… em casa da prostituta, chamada Raab…
Josué, 2:1

cada olho da minha casa
dá para um dos lados da muralha
do lado de fora
corre um vento raso
aos murmúrios que ameaça
aplicar-se às trompetes da declaração
de guerra um vento que sobe
e penetra na minha casa até falar
às paredes com a promessa
que ela será para os projécteis
uma pedra firme no invisível

do lado de dentro chega-me
o pão e o valor do comércio
da minha vida
no chão do meu corpo
é o lado em que sou
por umas poucas horas
a estrela mais ascendente
e nas seguintes a mais cadente

de um lado chega vê-se
uma miragem no deserto
do outro conheço quanto deserto
há dentro da miragem

sobre o fio da muralha
caminho entre dentro e fora
pé ante pé oscila a minha casa
oscila dentro de mim

Rui Miguel Duarte
3/05/12
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