Não tendes
nada onde pousar o sonho
nem guitarras
em que os dedos se exerçam
fados e mornas
a que deis as vozes
não há taças
para brindar com o vinho de outros
travessas
onde dispor a fome que é vossa
onde se encobriram de vós
do alcance dos vossos lábios?
da ilusão que vos deixaram
no lugar onde guardáveis o coração?
Não tendes nada
nem um pedestal
para repouso das estátuas
em que se fizeram
os vossos corpos as vossas mãos
nem o mármore com que as esculpais
porque afinal não possuis o sonho
fugiu-vos
como de um urso selvagem
virou-vos a face
ao ver em vós a face esconsa do leproso
ou o fluido turvo da vómito
um resto de vinho rasca
escorrente das vossas barbas em ressaca lenta
da falta de sonho de música e canto
sem nada onde pousar o sonho
mas com tudo onde pousar
o tudo que é vosso,
que a bófia e os cães vadios
vos não arrancaram,
que os astros vos não arderam
só o sono, um imenso e dolente
sono
Rui Miguel Duarte
6/11/10
Publicado na antologia Nada onde pousar o sonho, dedicada ao combate à pobreza e exclusão social (Lisboa, Desafio Miqueias 2010).
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