terça-feira, 7 de setembro de 2010

PROCURAMOS UM DEUS


"O reino dos antigos deuses não resgatou a morte / E buscamos um deus que vença connosco a nossa morte"

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Senhora da Rocha"


Há manhãs que acordam nos rostos

opacos e escuros das tempestades

para nosso afrontamento, e que assim

nos conduzem a quebrar a aliança

que nos liga às coisas

à realidade


a estilhaçar o fio de prata

que nos liga ao corpo, ao chão fremente


mas tudo se pode afundar no mar


é então que sacerdotes de um culto estranho

nos aproximam do peito as facas

igualmente escuras e opacas

e no-las apontam com rigor ao coração

e nós derivamos o olhar, o clamor

para os recintos rasgados na terra

para os círculos dilacerados no céu

em demanda no voo das aves

de um olhar fresco dos deuses antigos

de uma voz que se fizesse ouvir

na vibração dos ares


nas paredes poliédricas de templos de seda

procurámos o reino, o lugar de repouso

a casa à beira-mar

mas nada nos resgatou da morte

nada desviou a sombra da faca

da aorta, para longe da boca do medo

o reino dos antigos deuses

não chegou ao nosso meio

porque era vazio e frio de granito

e quanto se exaltou o vento

assim se foi


e sem saber sabíamo-lo: buscávamos um deus

que transpusesse as paredes e o espaço

que morresse connosco a nossa morte

nos secasse o rio que dos rostos

nos colos das manhãs ainda caem

e nos desdobrasse as asas

da sua vida


Rui Miguel Duarte

04/09/10


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